A criação = Deus criou e nós cuidamos

A Bíblia oferece duas versões distintas sobre as origens:  Gn 1,1-2,4. e   Gn 2,4b-25

Quadro comparativo

 

(Gn1,1-2,4a) 

 

O tempo de criação: Deus criou em 6 dias e descansou no 7º

O que antecede à criação: Antes de Deus criar, havia uma terra deserta e vazia, trevas e águas caóticas

O modo como Deus cria: Deus cria mediante a palavra; Ele "diz" e as coisas são feitas

Origem e condição do homem: O ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus. Recebe o encargo de  "dominar" o Mundo, ou seja, pastoreá-lo segundo o   modo de Deus agir .

Situação da mulher: Criada à imagem de Deus, goza da mesma  dignidade do homem e participa da co-criati-vidade divina.

 

(Gn,24b-25)

O tempo de criação: Não há alusão ao tempo da criação; tudo se passa como se fosse num só dia

O que antecede à criação: No princípio, existe terra seca e infecunda. A vida começa com a água fecundando a terra.

O modo como Deus cria: Deus cria pela ação. Javé modela, sopra, planta, dita normas.

Origem e condição do homem: O homem é criado do barro pelo sopro de Deus.  A proveniência do homem  do barro caracteriza sua situação existencial de dependência radical e fragilidade (cf. Jr 18,6; Is 29,15s): está nas mãos de Deus. E por Ele deve ser modelado. É chamado a "dar nome" aos animais, a exercer um certo domínio sobre eles.

Situação da mulher:  A mulher é criada desde a costela" de Adão, ou seja, desde a intimidade do homem, daquilo de que possui de mais substancial. Corresponde às mais perfeitas aspirações do homem.

 

  Gn 1-2

 - em quantos dias Deus criou?

 - a partir de que Deus começa a criar?

 - como Deus age para criar?

 - qual o lugar do  homem na criação e que papel lhe foi confiado por Deus?

 - a mulher de que modo ela foi criado e como exprimem cada um dos textos a sua  dignidade?        

 

* Pontos convergentes

1. Ambas as narrativas são confissões da criação, não pretendem oferecer uma explicação científica sobre as origens do Mundo.

 

2. Segundo Gn 1-2, todas as coisas foram criadas por um único Deus.  Não há deuses, só Javé é Senhor. Deus não nasce, não luta com monstros, não cria homens para servi-lo. Cria porque quer. Além disso, Deus transcende o próprio criado: a criação não é emanação nem refluxo da natureza divina, mas efeito de sua vontade pessoal.

 

3. No processo criador, só Deus cria, com absoluta liberdade e independência conferindo o ser a todas as coisas.

4. Deus criou o homem e a mulher como sua imagem (P), detentores de uma mesma dignidade, de uma mesma substância, não havendo, pois, superioridade ou inferioridade entre eles. Ambos são chamados à complementaridade, à vida de comunhão.

Obs.: somos seres criados independente, cada uma é cada uma, cada um é cada um, não somos metade um do outro. Mas, no projeto de Deus somo direcionados uns aos outros.

 

5. O ser humano goza de uma situação criatural distinta dos demais seres criados; recebe de Deus o encargo de co-criador. Isso significa, em primeiro lugar, que o Mundo criado por Deus não se caracteriza por uma magnitude fechada e concluída, mas passa pelas mãos do homem para que este o aperfeiçoe e o conduza a seu fim.

 

6. O lugar singular do ser humano na criação não deve ser entendida como se ele estivesse acima das demais criaturas. O que o Gênesis diz é que o homem está dentro e no termo da criação. "Ele é o último a despontar; encontra-se na retaguarda. O Mundo não é fruto de seu desejo ou de sua criatividade; não lhe viu o princípio. Porque é anterior a ele, o Mundo não lhe pertence; pertence a Deus seu criador. Mas o Mundo lhe é dado como jardim que deve cultivar e zelar. Portanto, a relação que o ser humano tem para com a criação é fundamentalmente de responsabilidade, uma relação ética" (L. Boff).

 

7. Tanto o javista quanto o sacerdotal fazem-nos entender Gn 1-2 como  relatos meta-históricos da criação. Aludem ao hoje e à origem radical de todos os homens. Há uma criação contínua e permanente, que entrelaça o passado e o presente com vistas ao futuro. Os próprios protagonistas bíblicos são representativos dos seres humanos de todos os tempos:

   * Somente a partir de Gn 3,20 surge o nome de Eva, ao qual também é conferido um significado simbólico: Eva, vida, mãe de todos os viventes, designa o papel da mulher de ser mãe.

 

Conclusão:

O universo, no horizonte da fé cristã, é abordado como “criação de Deus”.

O mundo não é produto de uma necessidade qualquer, de um destino cego, ou do acaso. Cremos que o mundo procede da vontade livre de Deus, que quis fazer as criaturas participar de seu ser, de sua sabedoria e de sua bondade: “Pois tu criaste todas as coisas; por tua vontade é que elas não existiam e foram criadas” (Ap 4,11).

 

Enquanto a teologia cristã da criação, até recentemente, ficou paralisada no velho discurso bíblico sobre as origens do mundo, interpretado de forma bastante literal, as ciências da natureza vêm progredindo espantosamente desde o Renascimento (inícios do século XVI). Fechada ao diálogo com o mundo moderno ocorreu um divórcio lamentável entre fé cristã e ciência, o que levou a modernidade a conceber um universo secularizado, capaz de se explicar e se determinar por si mesmo, independente da realidade de um Deus Criador.

 

A modernidade, por sua vez, na sua pretensão de emancipar o homem de uma transcendência religiosa, acabou distanciando também o ser humano dos outros seres e da natureza. Os prejuízos dessa postura muito pouco ética têm sido gigantescos: a extinção crescente de espécies de vida, a degradação da própria espécie humana etc.

Com isso, o sonho bíblico de um “paraíso terrestre” tem ficado cada vez mais distante.

 

Deus destinou a criação ao homem chamando-o a uma relação pessoal com Ele. Originada da bondade divina, a criação participa desta bondade: “E Deus viu que isso era bom... muito bom”(Gn 1,4.10.12.18.21.31). A criação é querida por Deus como um dom dirigido ao homem, como herança que lhe é destinada e confiada (cf. CIC 299).

Deus, em sua grandeza, não somente dá às suas criaturas o existir, mas também a dignidade de agirem elas mesmas, de serem causas e princípios umas das outras e de assim cooperarem no cumprimento de seu desígnio.

Aos seres humanos, Deus concede até de poderem participar livremente de sua providência, confiando-lhes a responsabilidade de submeter a terra e de dominá-la, concedendo serem inteligentes e livres para completar a obra da Criação, aperfeiçoar sua harmonia para o bem deles e de seus próximos (cf. CIC 307).

 

Despertada, porém como que de um longo inverno, a teologia cristã, nas últimas décadas, vem procurando estabelecer com as ciências modernas um diálogo reparador, trazendo-lhe, sobretudo, uma nova consideração ética de respeito e cuidado para com todas as formas existentes e uma visão de sentido e orientação global, em meio a tantos descalabros.

 

O ser humano, julgando-se o centro e o ápice da criação, na qualidade de trabalhador e dominador da natureza (numa assimilação incorreta de Gn 1,28), fez com que as demais criaturas se pusessem a seu serviço (“antropocentrismo cósmico”). Não deveria ser o contrário, se observamos bem o que dizem as Escrituras?

 

Segundo o relato bíblico e o desvendar da ciência, o ser humano não é a criatura que aparece nos primórdios da criação. Seu espaço vital já é habitado e cheio de outras vidas, sugerindo que ele não é proprietário, mas hóspede destes espaços.

 

Na conjuntura bíblica começa aí a aventura humana, a consolidação da “Aliança” para que o ser humano possa exercer sua vocação original: Ser com Deus companheiro, co-responsável no cuidado e cultivo do mundo, de onde, homem e mulher surgiram.

 

A espécie humana não ganha sua dignidade por estar no topo da cadeia alimentar, mas por ser, no exercício da sua ‘consciência e responsabilidade’, aquela que age como irmão e irmã de outras criaturas da Terra, buscando sempre a relação harmoniosa de vida.

 

Criado a imagem e semelhança de Deus

Deus disse: “Façamos o ser humano à nossa imagem, segundo a nossa semelhança”. (Gn 1,26)

 

O rosto humano como imagem de Deus

Criado “à imagem de Deus”, o ser humano é representante e administrador do Criador junto às demais criaturas, o cultivador do jardim em parceria com os céus.

 

Há várias interpretações para o predicativo bíblico “imagem e semelhança”: ”imagem como totalidade e “semelhança” como detalhes (liberdade, inteligência, vontade); “imagem” como este voltar-se para o interior (alma) e “semelhança” como expressões de ordem corporal da imagem; “semelhança” como sinônimo de “imagem”;    “imagem” como relação íntima com Deus e “semelhança” para advertir que o ser humano não é Deus, é apenas semelhante.

 

A formação do ser humano

Os físicos contemporâneos, bem como o relato bíblico, nos lembram que somos filhos da Terra, retirados do pó de suas entranhas maternas, poeira estelar, dirão os cientistas, irmão e irmã de tudo o que é terreno. Ou argila, como dizem as Escrituras, onde o Criador é descrito como aquele que nos modela em sua linguagem dialogal (cf. Gn 2, 7b). Mas o ser formado da argila recebe o “sopro divino”, que talham e dão forma ao seu espírito profundamente humano que o impulsiona a ir mais longe sendo um ‘instrumento amoroso na qual a Terra é particularmente tocada pelo Céu e o Céu pela Terra’.

 

Ser semelhante a Deus

O ser humano está aberto ao futuro. As palavras “imagem” e “semelhança” significam, como vimos anteriormente, que o ser humano foi criado à imagem de Deus, para que chegasse a ser semelhante a Ele. Há um processo, um crescimento do ser humano, uma assimilação da plena humanização. Assemelhar-se a Deus, contudo, não pode ser um processo fora de Deus, com quis Adão. Só em Deus a criatura humana se humaniza.

 

O pecado modifica o rosto humano. Onde é negada e humilhada à glória da pessoa humana, ali é negada a glória de Deus. O encantamento perde o brilho quando o ser humano não tem mais tempo para a poesia e esquece sua originalidade, que é ser imagem de Deus. Algumas pessoas querem viver independentes de Deus, emancipadas num presente sem futuro aberto, enquanto outras perdem os traços do rosto divino no espaço dos excluídos. Tanto a auto-suficiência quanto o submundo escondem a imagem de Deus no rosto humano. Tanto o torturador quando o torturado escondem o roto humano configurado em Deus.

 

Para reflexão:

Ler Colossenses, capítulo 1,12-23

 

Perguntas para reflexão e partilha

1.      Como imagem de Deus, qual a responsabilidade do ser humano frente à criação?

2.      O que podemos fazer no sentido de restabelecer a imagem de Deus, que se encontra desfigurada nos rostos de tantas pessoas?

3.      Qual o processo de assemelhar-se a Deus?

4.      Você olha para o próximo como Deus olha para você?